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“ALÔ, COMPANHEIRO, ISSO É HORA DE ESTAR DORMINDO?, SEU VAGABUNDO…”

  • Foto do escritor: Guilherme Salgado
    Guilherme Salgado
  • 8 de abr. de 2018
  • 3 min de leitura

Acordei com a empregada batendo na porta e me chamando para atender a um telefonema urgente.

Tinha ido dormir tarde com a notícia de que meu velho amigo Lula seria preso no dia seguinte.

Corri para atender. Era a última pessoa no mundo, naquele momento, em quem eu poderia pensar que me ligaria.

“Tem um amigo teu aqui querendo falar com você. Vou passar pra ele”, disse-me Frei Betto.

Que amigo seria esse, a essa hora, cedo da manhã de sexta-feira?

“Alô, companheiro, isso é hora de estar dormido?, seu vagabundo…”

Com aquela voz rouca e a habitual delicadeza, só poderia ser ele, o Lula.

Este ano completa 40 anos que ficamos amigos naqueles tempos conflagrados das greves no ABC.

O normal seria que eu procurasse animá-lo no momento mais difícil da vida dele, mas aconteceu o contrário. Como de costume, Lula procurou me animar.

Bem disposto, contou-me que já tinha feito seus exercícios diários e que estava com a consciência tranquila, iria passar o dia no sindicato.

“Eles é que não devem estar”, foi logo falando, com a disposição naquele momento de não se apresentar à Polícia Federal em Curitiba, como mandava a ordem de prisão do juiz Sérgio Moro.

Passei logo a informação para o jornal e fui para o Sindicato dos Metalúrgicos junto com o fotógrafo Jorge Araújo, parceiro de muitas jornadas na mesma Folha.

Voltei a ser repórter, dei-me conta no caminho, relembrando quantas vezes fiz este mesmo caminho como repórter e, depois, como assessor de imprensa de Lula nas campanhas e mais tarde no governo.

Há tempos não ia ao sindicato, mas não tive dificuldades para chegar ao andar da diretoria, encontrando amigos pelo caminho, que me levaram até lá.

Meu celular não parava de tocar e apitar. Eram colegas querendo falar comigo sobre a notícia que tinha acabado de sair no portal: Lula não iria para Curitiba.

Eu não tinha mais nada a dizer além do que estava escrito naquela curta nota de dez linhas.

No sindicato, Lula ia de uma sala a outra conversando e fazendo reuniões com um monte de gente.

E se ele mudasse de ideia? Meu furo seria furado.

Às três da tarde, quando já não daria tempo de Lula chegar a Curitiba até as 17 horas, como queria Moro, fiquei mais aliviado, quando vi chegando o Mino Carta.

Este grande jornalista foi o principal responsável por eu estar ali, e pelo rumo que minha vida tomou desde que fui trabalhar com ele na IstoÉ e no Jornal da República, no final dos anos 70.

Tinha acabado de voltar da Alemanha, onde trabalhei como correspondente do Jornal do Brasil, e a primeira pauta que o MIno me deu foi entrevistar o Lula.

“Gruda nesse cara, quero matéria toda semana”.

Mino tinha sido o primeiro editor brasileiro a dar uma capa com o metalúrgico, acompanhado de uma longa entrevista: “Lula e os trabalhadores”.

Logo fiquei amigo do então líder de um novo sindicalismo, assim como nossas famílias, e o resto da história está contado no meu livro de memórias “Do Golpe ao Planalto _ Uma Vida de Repórter” (Cia. das Letras) sobre meus primeiros 40 anos de jornalismo (agora já são 54).

Deixei o governo e de trabalhar com o Lula em 2004, mas até hoje tem coleguinha achando que ainda sou assessor dele. Não tem jeito.

Continuamos amigos, desses que estão sempre à disposição do outro nos bons e maus momentos da vida.

Embora anunciada há muito tempo, a prisão de Lula foi um duro baque para mim e toda uma geração de brasileiros que ajudaram o Brasil a reconquistar a democracia e chegaram ao poder.

Menos para ele, que nestes momentos tira forças de onde não sei, e vai em frente.

Na sala reservada aos velhos amigos, Mino e eu ficamos lembrando de tempos mais gloriosos da luta contra a ditadura vividos naquele sindicato.

Um deles me sugeriu escrever um novo livro com o título invertido:

“Do Planalto ao Golpe”.

É a vida. Vida que segue.



Ricardo Kotscho: Paulista, paulistano e são-paulino, Ricardo Kotscho, 69, é repórter desde 1964 e já trabalhou em praticamente todos os principais veículos da imprensa brasileira em diferentes cargos e funções, de estagiário a diretor de redação. Foi correspondente na Europa nos anos 1970 e exerceu o cargo de Secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República no período 2003-2004 (governo Lula). Em 2008, foi um dos cinco jornalistas brasileiros contemplados com o Troféu Especial de Imprensa da ONU. Tem 19 livros publicados _ entre eles, “Do Golpe ao Planalto _ Uma Vida de Repórter” (Companhia das Letras) e “Explode um Novo Brasil _ Diário da Campanha das Diretas” (Editora Brasiliense).

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