Endereçando a anglofilia
- Guilherme Salgado
- 6 de mar. de 2021
- 3 min de leitura

Coluna do grande Sérgio Rodrigues, publicada na Folha – quinta-feira, 4 de março de 2021. Sérgio nasceu em Muriaé, em 1962, a 160km de Juiz de Fora, e foi para o Rio em 1980.
x-x-x-x-x-
Mas antes de republicar a crônica, uma pequena observação: já estamos na “jequice anglófila”. O exemplo mais próximo deste aqui que se “proclama” revisor é sem dúvida o verbo realizar. Realiza-se tudo, a toda hora. A situação ficou tão dramática que fui ao Dicionário de Sinônimos e elenquei, em um caderninho cheio de onda que tenho: “efetuar, desenvolver, executar, exercer...” e outros do mesmo jaez (jaez...?!).
Miniconfissão: tempos bicudos, mas sem querer perder o prazer do contato com o papel, ia ao Camilo, dono da banca na esquina da Oscar Vidal com a Rio Branco. E pagava antecipadamente 20 reais por quatro edições da Folha, somente o jornal de quinta, por causa do Sérgio Rodrigues. O trem melhorou um tiquim, virei assinante.
Agora vamos à coluna de hoje:
Chegará o dia de o Brasil lidar com sua baixa autoestima linguística
O Brasil fala inglês muito mal, mas ainda assim – ou por isso mesmo – tem uma postura servil e apatetada diante da língua do coaching, do lockdown e do making of, expressão muitas vezes grafada erradamente como “making off”.
O parágrafo acima lança a coluna em terreno escorregadio, onde já se estabacaram gerações de puristas incapazes de compreender que línguas são organismos tão vorazes quanto indomáveis. Vamos em frente com cuidado.
No domingo (28), a manchete principal da Folha destacava a prova de inglês do Enem como a que mais tira competitividade de alunos da escola pública no maior exame de acesso ao ensino superior.
Não é que o ensino privado seja muito melhor: nossa educação é democrática na ruindade anglófona. O privilégio dos alunos da rede particular se materializa fora da escola, na forma de cursos avulsos e programas de intercâmbio.
No mesmo domingo, o apresentador de TV Luciano Huck, que fala inglês fluente, escreveu numa colaboração para o Estadão que “as cabeças mais admiradas nas próximas décadas” serão as que forem capazes de, entre outros feitos, “endereçar a pobreza extrema”.
Huck não inventou nada. “Endereçar” com o sentido de atacar, lidar com (um problema) é um dos anglicismos toscos da moda no corporativês, jargão em que anglicismos toscos abundam.
Trata-se de uma tradução preguiçosa de “address”, o que situa esse uso de endereçar na mesma prateleira de “planta” com o sentido de instalação industrial e de “realizar” significando “dar-se conta de”.
Chamo de preguiçosa essa modalidade de tradução porque, por ignorância ou descaso, ela se dispensa de considerar as características da língua de destino, submetendo-a com brutalidade aos caprichos da língua-fonte.
“Ah, endereçar, realizar e planta não têm esse sentido em português? Dane-se: agora têm!”, proclama o tradutor preguiçoso. E – eis o elemento que complica tudo – muitas vezes acaba tendo razão.
O português brasileiro rouba e roubará do inglês – e em futuro próximo, provavelmente, também do mandarim – tudo aquilo que os falantes, soberanos da língua, entenderem de roubar.
Grande parte do butim cai no esquecimento sem deixar vestígios, como modismos de verão. Outra parte é incorporada à paisagem local de tal forma que em breve ninguém se dá conta de sua origem.
Aconteceu há tempos com o time de futebol (“football team”). Mais tarde, com o show e o shopping, que nem precisaram de novas grafias. Mais recentemente ainda, com o verbo deletar. São incontáveis os anglicismos que circulam por aí sem sotaque.
Nada de novo. O mesmo havia ocorrido, algumas gerações antes, com um grande elenco de palavras importadas do francês. Na época, houve sabichão defendendo chamar o abajur de abaixa-luz.
O novo sentido de “realizar” parece estar criando raízes, paciência. É cedo para saber se seguirão seus passos modismos como o de “endereçar um problema”. Ou o da preposição sobre numa frase como “língua é sobre liberdade”.
Enquanto não é tarde, prefiro correr o risco de ser atropelado pela marcha da história e denunciar essas traduções preguiçosas – não exatamente como erros de português, mas como sintomas.
Hoje, no meio da mortandade e da implosão institucional patrocinadas por um governo criminoso, esse é o menor dos nossos problemas. Se o Brasil sair dessa, chegará o dia de lidar com a baixa autoestima cultural evidenciada por nossa jequice anglófila.
Comments