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Filosofia e vida: os contravenenos

  • Foto do escritor: Guilherme Salgado
    Guilherme Salgado
  • 13 de fev de 2018
  • 3 min de leitura

Lá em seu início, a filosofia parece ter servido sobretudo para viver. Quem passasse por ela viveria melhor. A filosofia já teve a ver com a felicidade humana. Depois mudou. A partir de Platão, mudou. Entraram as grandes abstrações, o Ser, o Bem, a Verdade. Aristóteles, aluno de Platão, deu forma de Sistema a essa virada, da vida para o pensamento puro. Essa virada tem história.

Tudo partiu da interpretação do mandamento de Sócrates “conhece-te a ti mesmo”. Conhecer ficou sendo a tarefa da filosofia. Organizou-se progressivamente em áreas, cada uma voltada para o bom conhecimento de determinado território. A metafísica, a lógica, a física, a ética, a política, a poética vieram a ser exercícios de conhecimento. Foi assim que se fez a grande filosofia, a da nossa herança grega. A que, com justiça, nos enche de orgulho.

Mas Sócrates também fez outra pergunta. Andava pela Ágora inquirindo quem passasse: “Você está cuidando de si?” Totalmente outra pergunta. Essa não é abstrata, do campo do conhecimento. Diz respeito à vida daqueles a quem é feita. Pois quem não cuida de si, como cuidará da cidade? Entrar na política, ambição dos jovens atenienses. Quem não cuida de si sequer pode “conhecer a si mesmo”. Quem não cuida de si não será feliz. E, na origem, era para isso que a filosofia queria servir.

Entre essas duas falas socráticas – “Conhece-te a ti mesmo” e “Cuida de ti” - decidiu-se o destino da filosofia. O caminho que mais conhecemos, e pelo qual temos ido com tanto prazer, é o de Platão. O do conhecimento. O outro, de que pouco sabemos e menos ainda frequentamos, é o de Antístenes, que também foi discípulo de Sócrates. Mesmo, segundo ele próprio, o único a de verdade seguir o mestre. Antístenes passou pela outra via. A do cuidado de si. Não fez escola. Não elaborou teorias abstratas. A vida de que se deve cuidar não é abstrata. É sempre a de alguém, que precisa se cuidar. Antístenes andava maltrapilho pelas estradas, detestava as cidades nas quais imperam as leis dos homens, que subjugam a vida. Sem sistema, sem discurso, sem palavras, Antístenes perdeu. O Sócrates que herdamos foi o de Platão. É um grande Sócrates. Fizemos com ele belíssimas coisas. Mas não é o Sócrates inteiro.

Se admitirmos que a filosofia como sistema fechado, coerente e completo, acabou se afastando da nossa vida de pessoas comuns, podemos pensar nas “escolas menores” como contravenenos para esse abandono. Visitar os filósofos do século III a. C. até o II d. C – Epicuro, Cícero, Sêneca, Lucrécio, Marco Aurélio – e acompanhar suas reflexões sobre a vida feliz, a sabedoria necessária para atingir a felicidade individual. Não vamos encontrar grandes teorias sobre o Ser, O Bem e a Verdade. Mas teremos nas mãos pensamentos sobre como cuidar de si, viver na cidade, não contrariar a natureza. Sobre a amizade, a tolerância e a serenidade diante da morte. Sobre aprender, com o tempo, a viver feliz. A envelhecer com leveza. Esses, os estoicos, epicuristas, céticos, cínicos, fizeram da filosofia uma prática de cuidar.

No período seguinte, o cristão, está a imensa figura de Santo Agostinho. Também não construiu sistemas. Propôs doutrinas para entender o mistério do Deus trino, pensou sobre o tempo e a eternidade, a liberdade, a graça e o mal. Mas, sobretudo, confessou. Revirou-se para fora, apresentou-se aos seus semelhantes, contou sua história. Nessa história é que apareceu seu pensamento. As Confissões são um exercício de pensar quando a filosofia é uma exposição da alma.

No Renascimento encontramos Montaigne e seus Ensaios. Nada de estruturalidade, de armadura lógica. O pensamento se experimenta, ensaia uma vida. Não A Vida. A vida de Montaigne. Quem quiser que pegue lá alguma coisa para si. Mais um pouco adiante, no começo da época moderna, Pascal, em seu livro Pensamentos, segue a mesma natureza não estruturada dos ensaios de Montaigne. Podemos frequentar Pascal como quem visita um amigo. É um bom ambiente para pensar.

Adiante, o século XIX. E o imenso Nietzsche, condenando todos os grandes sistemas do passado como formas de aprisionamento da vida, manobras de submissão da sua potência aos valores que Platão extraiu de Sócrates ao interpretá-lo como mestre do conhecimento puro. Nietzsche, o “filósofo do martelo”. Porque pensar também pode ser destruir, quando a vida está em perigo.

Contravenenos, boas companhias. Quando nos disserem que a filosofia está moribunda, podemos sempre responder: Está não. Enquanto formos capazes de cuidar, confessar, ensaiar e destruir, a filosofia terá toda a musculatura necessária para nos salvar do último pôr do sol. Colada na vida, ela acende uma luz. E tudo fica claro outra vez.

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Gostei muito deste texto do Globo; transcrevi-o, e agora o publico. É de Márcio Amaral, professor de Filosofia no Rio de Janeiro.

 
 
 

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