“Leigas reflexões” sobre Confissões, de Santo Agostinho
- Guilherme Salgado
- 31 de mar. de 2021
- 4 min de leitura
Antonio Carlos Fester, escritor, professor de Literatura e de Direitos Humanos

O belo texto, do inolvidável mestre Antonio Carlos Fester, foi publicado no jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, a 21 de novembro de 1991, ou seja, há quase 30 anos...!
Por solicitação deste rabiscador de palavras, pedi a ele que me enviasse um texto sobre Confissões, desconhecendo que sua crisma havia sido celebrada a partir do livro.
A amizade e o amor entre nós vêm de muitos anos.
Fazemos parte dos Grupos de Oração do Frei Betto.
Um dos momentos mais marcantes/emocionantes foi ter acompanhado, no Hospital Santa Joana, em São Paulo, ao lado do médico Adriano Ferreira da Silva, o nascimento do nosso menino mais velho, João Vítor, que fez domingo passado maravilhosos 19 anos.
Dona Conceição, uma das avós, ao perceber/saber que o primeiro neto nascera, passou mal, sendo imediatamente socorrida pelo Adriano...
O texto vem bem a propósito, pois estamos na Quarta-feira da Semana Santa.
x-x-x-
“O nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Vós” (Livro I, 1); “tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei. Eis que habitáveis dentro de mim e eu lá fora, a procurar-Vos! (...) Saboreei-Vos e agora tenho fome e sede de Vós. Tocaste-me e ardi no desejo de vossa paz. Quando estiver unido a Vós como todo o meu ser, em parte nenhuma sentirei dor e trabalho. A minha vida será então verdadeiramente viva, porque estará toda plena de Vós. Libertai de seu peso aqueles a quem destes a plenitude. Porque não estou pleno de Vós, sou ainda peso para mim” (Livro X, 27 e 28). E também para os outros, acrescentaria eu.
Para tanto, Senhor, confirma-me na fé e no Vosso serviço, para que, em Vós, eu cada vez seja mais livre. Pois com nada e ninguém conheci a Liberdade como convosco. E, no entanto, não perguntes o que fiz de meus talentos até agora. Confio em Vossa misericórdia e em Vosso perdão. Perdoa-me, Senhor, se só agora, quase cinquentenário, procuro o sacramento da confirmação. Perdoa-me, por outro lado, o atrevimento de crismar-me. Mas a certeza do Vosso amor e da Vossa misericórdia, uma vez que me dás tantas coisas que não mereço, a começar pelo dom da vida, é que me tornam ousado e fazem com que me aproxime de Vós, da Vossa Igreja, tenha até a coragem de escrever. Com Santo Agostinho, repito: “Só na grandeza de Vossa misericórdia coloco toda a minha esperança” (Livro X, 29).
Fortalece-me, Senhor, pelo sacramento da militância cristã, de tal forma que saiba deixar o Espírito falar em mim e por mim; possa entender os sinais da presença de Deus nas situações humanas, nos conflitos sociais, nas lutas políticas, captando a íntima relação entre vida e Palavra de Deus; saiba discernir caminhos e opções; resista a toda e qualquer sedução, seja coerente como o Evangelho e confie incondicionalmente no Pai, saiba interpretar a Palavra de Deus e traduzir em palavras o que se vive na prática; traga nas entranhas a vontade irrefreável de realizar na sociedade o projeto de Justiça de Deus, procurando agir como Jesus agiria e identificando no próximo o rosto de Cristo; seja prudente e humilde, sabendo reconhecer os meus limites; enfim, seja transparente e sempre fiel ao vosso Amor (cf. Frei Betto. A Comunidade de Fé – Catecismo Popular. Coleção Fé e Libertação, 1989, p.96).
Que, com toda a comunidade cristã, sempre diga: “Vinde, Espírito Santo, enchei o coração de vossos fiéis e acendei neles o fogo do Vosso amor. Mandai o Vosso Espírito e tudo será criado. E renovareis a face da terra”, como digo agora que a minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 46-47). Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
x-x-x-x-x
Meu amigo Guilherme:
O que dizer sobre Santo Agostinho?
Eu tinha duas edições das Confissões, uma portuguesa e uma nova tradução, com prefácio de Boff ou Betto, não sei lhe dizer. Ou de nenhum dos dois.
Sem consultar os livros fica difícil escrever a respeito porque há muito tempo o li.
Na época, adorei.
É realmente, creio, a primeira autobiografia da literatura ocidental, e apaixona pelo que tem de espontâneo. O autor não se vexa de desnudar-se para o leitor, como o faria, com grande sucesso, no séc. XX, Thomas Merton em A Montanha dos Sete Patamares, também ele um personagem agostiniano, de conversão tardia, pais solteiros os dois, etc etc.
Veja o que escreve sobre Agostinho, em Mimesis, Erich Auerbach, autor fundamental da história da teoria literária do séc.XX, recentemente reeditado pela Perspectiva. Tenho a primeira edição em português, de 1971. No texto 3, A prisão de Petrus Valvomeres.
Tenho muito interesse em reler para ver se ainda gosto – e há tanta autobiografia interessante agora... Já leu Solo, do César Camargo Mariano? É das melhores – porque o tempo me deixou com muitas reservas com Santo Agostinho.
E há ainda Santo Agostinho e Confissões, que merece um verbete isolado. Assista ao bom filme de Roberto Rosselini sobre ele, em DVD.
Agostinho atribui o pecado original à sexualidade, tornando-se responsável por toda a repressão/hipocrisia da Igreja Católica sobre o assunto. Se você pensar que em pleno 2021 o Código de Direito Canônico (cuja reforma seria a única forma de melhorar a Igreja, afirma o jurista Fábio Konder Comparato) diz que a finalidade do sexo é a reprodução, e que isso é resultado das ideias agostinianas, me dará razão.
Alguns moralistas católicos modernos já admitem o sexo como expressão amorosa, mas não muda o Direito Canônico.
Prefiro a definição de Thomas Merton: “Nasci egocentrado, e é isso o pecado original” (Novas Sementes da Contemplação). Graças a ele finalmente entendi o pecado original.
Deve-se a Agostinho a separação entre corpo e alma, fruto da cultura grega e não da cultura contemporânea de Jesus, que nunca separou as duas coisas.
É o que vem encarando a Teologia da Libertação, por meio do Boff, Betto... Agostinho prega a predestinação, que considero um horror. Que Deus é esse que faz de nós marionetes? O Deus da Teologia da Libertação é o Deus do Amor, da Liberdade (releia Jesus Libertador, do Boff).
Quando me crismei, perto dos 50 anos, escrevi o texto supra a partir de Agostinho. Ele me emociona. Só em Ti meu coração repousa...
Espero de alguma forma ter atendido.
Abreijos do
Antonio Carlos Fester
Comments