Podem me chamar de alegria...
- Guilherme Salgado

- 27 de jan. de 2021
- 4 min de leitura

Foto e legenda tiradas com a tia Sonha e publicadas no Facebook...
Fechem os olhos. Procurem imaginar uma menina linda, maravilhosa...
Acharão a Letícia. Nela tudo é simples. O jeito de acordar, o jeito de ter fome, as roupas, o jeito de comer, de pedir suco.
O jeito de dormir e de “convocar” a tia (“amiga!!!”), a mim, aos primos (João Vítor, o mais velho, uma paciência imensa com ela, é tratado todo o tempo de “Juvito”, algo assim). O nome do Luís Henrique, mais novo, pronuncia com todas as letras: Luís Henrique...
Ela e a tia são inseparáveis. Às vezes dormem abraçadas, tenho que acordar a Sonia para subir do colchão e ficar ao meu lado.
Já é de casa. A prima Mônica, da Família Mineira, chama de “Môncala”, doida com a “Môncala”.
Letícia tem Síndrome de Down, 15 anos, nasceu a 5 de outubro de 2005. A mesma idade do Luís.
Nasceu com uma marca no rostinho, um angioma, proliferação de vasos sanguíneos na pele; são manchas, explica a Wikipédia.
E isso a torna mais, muito mais linda!
Emenda seu nome: LetíciaCalilEliasFlorindo (fala assim, tudo de uma vez).
Parece ser onipresente. Está em todos os lugares, a voz ecoa pela casa. E a amamos infinitamente. Agora mesmo, 20h30 de terça, 26 de janeiro, estou ouvindo sua voz, em algum canto.
Quando alguém lhe faz um favor, afirma: “Muitamoloso comigo...”
Como não ser...?! Como não ser “muitamoloso” com você, menina...?!
A tia foi de avião a Campinas. Até o Rio. A empresa de ônibus não as trouxe, por falta de uma tal autorização especial da mãe. Eu e o João fomos de carro buscar as duas no Rio.
Entrou no carro cansada, mas já fazendo festa. Paramos na Casa do Alemão, comeu um belo de um cachorro-quente, daí a segundos estava enturmada com os funcionários.
Agora deu de vigiar os três (o pai e os filhos) quando Sonia sai. Sonia volta e ela não perde tempo:
- Ele ficou “têbado”. Café...
E aponta para mim. Roda a cabeça, como se o tio tivesse bebido.
Mas o tio não bebe. Só café mesmo.
Acrescenta:
- Brigaram de cabelo. Na rua. O bumbum...
Levanta-se e mostra como foi.
E dança e ri.
E ri e dança.
E solta um sorriso maroto, sabendo que inventou a história.
Fala com certa dificuldade, às vezes não conseguimos entender.
Letícia, o irmão Gabriel (de 21 anos), os pais (Simone e James) e duas vira-latas, Babí e Bolinha, pelas quais é apaixonada, moram na cidade de Salto, ao lado de Itu.
Lá onde mora, poucos recursos são oferecidos a uma menina como ela, que exige muita, mas muita atenção.
Letícia tem um jeito de ser deliciosamente querido.
Nós a levamos a uma fonoaudióloga, Fernanda Calil, no Edifício das Clínicas, talentosíssima fonoaudióloga, que lhe passou diversos exercícios a fim de aumentar o tônus da língua, da musculatura bucal.
Quando a Fernanda lhe perguntou o que fazia durante o dia, foi rápida:
- Como, durmo, “sisto”...
“Sisto” é o jeito de dizer “assisto”.
Ama Chiquititas, Heloísa, Pakaraka, Laurinha. Vídeos do Youtube.
Está conosco desde 16 de dezembro, imenso presente que Deus anualmente traz para a nossa casa, sempre junto com o “Papaiuel”. Vem todo ano passar o Natal e o Ano-Novo conosco.
Quando alguém morre, ou ela acha que morreu, responde depressa: “de cança”, modo especialíssimo de dizer “câncer”.
Com isso, quase o mundo inteiro morreu de “cança”...
A mãe da Letícia, Simone, é a única irmã da Sonia. Os pais morreram. A família pertence à Congregação Cristã no Brasil, igreja que chegou ao país a partir do trabalho missionário de Louis Francescon, em 1910. Os participantes “congregam” em cultos semanais. O presidente hoje é um “ancião”, Cláudio Marçola, da região de Araraquara.
Letícia estuda em uma escola comum e, nos moldes da legislação, em uma classe comum para garantir a inclusão social. Objetivo nobre e humano. Entretanto, em Salto falta preparo aos profissionais que deveriam lidar com esse tipo de criança, dotadas de inocência e afabilidade que nelas encontramos farta e diariamente.
Certa vez, para seu acompanhamento em sala de aula foi designada uma funcionária da escola (não era professora ou da área), perto de se aposentar, que talvez tenha visto uma criança especial pela primeira vez quando olhou para a Letícia. O trauma foi gigante para as duas.
Em Salto há uma APAE, mas atende a pouquíssimas crianças, portadoras de limitações muito, muito maiores do que a Letícia.
Letícia nos “domina”. Ficamos 24 horas ligados no que se liga, rindo com o que ri, cantando com o que canta, ouvindo o que ouve, “sistindo” o que “siste”...
O Luís, brincando, acabou de lhe dizer: “Você nos deixa malucos, menina...!”
Malucos de amor.
Sonia não consegue trabalhar direito, eu não consigo revisar direito, o João e o Luís não conseguem estudar direito.
Aí nos revezamos, e cuidamos dela todo o dia. Longe das três janelas daqui da frente, das quais nem se aproxima.
O esforço, a atenção e a responsabilidade se diluem quando olha em nossos olhos e diz:
- Vem “blincar” comigo, vem...!
E completa: “Qui amo!”, maneira dela de dizer “te amo”.
O pai e a mãe devem estar virando a esquina para buscá-la.
Simone, doce que só, fala em tom suave:
- Sonia, nós estamos morrendo de saudades.
Quem não, menina...? Quem não, Letícia...?




Lindo testemunho. É verdade: seres com Síndrome de Down são amor puro, intenso!
Que lindas, Letícia e Sônia! Amei o texto!
Belo texto sobre a linda Letícia!