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Praça da Estação, Juiz de Fora

  • Foto do escritor: Guilherme Salgado
    Guilherme Salgado
  • 31 de jan. de 2018
  • 4 min de leitura

Entrevista com Isolino Ferreira da Silva, 58 anos, gravada em 28/04/2017 (dia de greve geral), durante a concentração para o ato contra as reformas, na Praça da Estação de Juiz de Fora:

“Meu pai morreu no cabo da enxada, trabalhando. Como meu avô Bernardino, aliás, que foi ofendido de cobra quando capinava uma chácara lá pros lados de Fervedouro e teve o corpo largado feito um traste na entrada do hospital de Carangola. Como meu bisavô Deolindo também, e assim por diante, família acima, no sangue. Cumpro minha jornada de auxiliar de serviços gerais num edifício ali da Rio Branco, mas sustento minha família sem dispensar a enxada. Sou jardineiro há muitos anos. Tenho uma clientela fiel aqui em Juiz de Fora, graças a Deus. Também já fiz de um quase tudo na vida. Desde os dez anos de idade, quando comecei na roça com meu pai, pulei de viração em viração. Fazia entrega de bicicleta prum pequeno armazém lá da minha terra, fui engraxate, chapa, faxineiro, lavador de carros, camelô, servente de pedreiro, porteiro de boate, garçom e frentista. De carteira assinada tenho só quinze anos, pode? Aí meu filho caçula, o Rodrigo, fica me dizendo que com essa reforma da Previdência eu vou ter de trabalhar até morrer. Que aposentadoria, mesmo, só no dia de São Nunca. Ele tá na universidade, faz curso de Física na Federal. Sempre estudou direitinho. Passou em quarto lugar no vestibular. Mas todo mundo lá de casa fica preocupado – nem dormir a mãe dele dorme direito, coitada – porque o Rodrigo participa de tudo quanto é manifestação. A gente liga a tevê e vêm aquelas imagens de São Paulo, do Rio, de Brasília, de Goiás, a polícia batendo com gosto, mandando bala de borracha no prumo da cabeça e do peito da estudantada, usando de covardia... um terror. Ontem eu fui conversar com ele sobre isso, sobre o perigo desses protestos, e perdi a paciência... passei do limite, agarrei no braço dele, gritei, essas coisas. Ele não levantou a voz. É um menino muito correto, modéstia à parte, muito educado. Nunca levantou a voz pra mim, sabe? Fez somente uma pergunta: se eu achava que o Arlindo, meu primogênito, que trabalha há dez anos no Demlurb e que já tem família pra cuidar, vai aguentar levantar peso e andar dependurado em caminhão, debaixo de chuva e de sol, com a fedentina e o chorume queimando nas narinas, até os 65 anos de idade. ‘No mínimo até os 65’, ele reforçou, ‘porque a roubalheira e a maldade desse povo que manda no Brasil não tem limite’. Foi pro quarto, botou as roupas na mochila. Nem disse que estava indo embora. Por isso eu finquei o pé aqui hoje... Nunca vi tanta gente... Vou encontrar o Rodrigo, pedir desculpas, confessar que o clima lá em casa é de luto fechado depois do nosso entrevero. Uma choradeira só. Ele vai me perdoar, o senhor vai ver, eu tenho certeza, e a gente vai seguir de braço dado no meio deste povo todo, com a família em peso aqui na praça: aquele ali à esquerda, de camisa vermelha, é o Arlindo, a mulher dele tá mais ao fundo, com um vestido listrado, segurando meu neto no colo. A patroa veio com as três meninas. Desse governo e desses políticos que tão na cacunda dele a gente não pode esperar nada que presta. Reforma, então, nem pensar! Um perigo! É só ouvir o noticiário: milhões e milhões de propinas, deputados, senadores, ministros e governadores comprados em pencas... Malas de dinheiro passando de mão em mão, uma sem-vergonhice danada... Tudo a mando daqueles que tão por cima da carne seca, os de sempre, os que só pensam em forrar a própria burra com dinheiro público. Ficam lá, nas alturas, mamando e botando a conta no embornal dos mais pobres, da gente que vende o almoço pra comprar a janta. Chega! Tá mais que provado que esse rombo da Previdência é mentira, que reforma trabalhista é conversa fiada pra destruir de vez a vida do trabalhador. Hoje é pra gritar ‘diretas já’ e ‘fora todos eles’ até perder a voz. Meu caçula vai ficar de braço dado comigo, o senhor vai ver.”



Texto ficcional do escritor Iacyr Anderson Freitas, publicado (em versão condensada) no caderno especial do jornal Tribuna de Minas de 11 de junho de 2017, dedicado aos 167 anos de emancipação política de Juiz de Fora, e divulgado também em folheto impresso pelo Sindifisco-MG, distribuído aos que participaram dos protestos contra a Reforma da Previdência no ano passado em Juiz de Fora. Iacyr já publicou mais de vinte livros de poesia, além de três de ensaio literário e do volume de contos Trinca dos traídos (2003), detentor da menção especial do Premio Literario Casa de las Américas, em Cuba. Sua obra já foi traduzida para diversas línguas, tendo sido publicada em muitos países – Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra, Malta, Nicarágua, Peru, Portugal, Suíça e Venezuela, obtendo, inclusive, quase uma vintena de premiações nacionais e internacionais, com destaque para as duas vezes em que conquistou o 1º lugar no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte. De seu vasto percurso bibliográfico, além do volume de contos já citado, podemos realçar os seguintes livros de poesia: Terra além mar (2005 – antologia publicada em Portugal e que recebeu o Prêmio Brasil América Hispânica); Viavária (2010 – 1º lugar no Prêmio Literário Nacional do PEN Clube do Brasil); Ar de arestas (2013 – finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom) e Estação das clínicas (2016).


 
 
 

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